ARTIGO DE OPINIÃO: Reconstruir um Fórum Social Mundial de Migrações a partir das lutas regionais é possível
por Patricia Gainza e Paulo Illes
O Fórum Social Mundial, realizado na cidade do México entre os dias 1 e 5 de maio deste ano, contou com a participação em torno de, segundo os organizadores, 1.500 pessoas dos 4 continentes. O ambiente foi marcado pelo debate a respeito da conjuntura da América Latina que passa por uma crise democrática, situação também notada no próprio México o qual tem se tornado, de acordo com as críticas das organizações locais, um país cada vez mais militarizado sob o comando de AMLO. Há um descontentamento por parte das organizações da sociedade civil em relação à ambição do atual presidente de estender o mandato por mais seis anos, o que não está permitido pela atual constituição.
Tal cenário político conturbado se refletiu sem dúvida na organização do Fórum através de problemas de logística como pouca sinalização, atividades espalhadas pela cidade além de espaços vazios e com pouca participação. No aeroporto, a polícia de migração mexicana dificultou o ingresso de participantes. Entre as pessoas impedidas de entrar estava Keila Simpson, ativista transsexual, diretora executiva da associação brasileira ABONG. As atitudes das autoridades mexicanas foram duramente condenadas pelos movimentos e ganhou destaque na imprensa como sendo um caso de transfobia. A delegação brasileira no FSM realizou um ato de desagravo no dia 04 de maio pela manhã no auditório principal.
Apesar de muitos esforços da equipe local, a qual esteve sempre presente e bem-disposta a dialogar e resolver pequenos conflitos, acreditamos que a organização do FSM não foi a desejada. A tardia decisão dos locais onde as atividades aconteceriam, a falta de comunicação clara, baixa convocação de participantes locais além de uma grande desarticulação dos movimentos sociais e pouco espaço na imprensa local foram alguns dos problemas logísticos enfrentados.
No entanto, no que diz respeito aos objetivos da delegação da RSF, tivemos sucesso: como previsto, realizamos três jornadas de trabalho para avaliar os Fóruns Sociais Europeu e Americano de Migração e apoiar o processo para o Fórum Africano, repensando com isso as dinâmicas do Fórum Social Mundial das Migrações como um todo.
“Entreforos”
Participaram desta jornada de trabalho por volta de 30 pessoas de pelo menos 10 redes internacionais. Fruto deste espaço de discussão encaminhou-se para uma continuidade dos Fóruns Regionais como espaço de fortalecimento das redes locais e revitalização do comitê internacional do Fórum Social Mundial das Migrações com a adesão e inclusão de uma diversidade de redes e associações de imigrantes com protagonismo nos fóruns regionais. A realização de um Fórum Social Africano de Migrações em dezembro deste ano ou início de 2023 foi a principal deliberação da jornada de trabalho e pede-se o apoio e o empenho de todos para fortalecer esse processo já iniciado pelas organizações africanas presentes no México.
Como conclusão deste momento de reflexão foi tirada uma minuta de compromisso conjunto:
As organizações de migrantes e de apoio às pessoas migrantes e refugiadas, reunidas no Fórum Social Mundial na Cidade do México nos dias 1 e 6 de Maio, discutiram através de seis workshops coorganizados por atores sociais da América Latina, África e Europa o contexto atual da migração, modelos de políticas de migração e as estratégias para continuar a construir em conjunto o processo de fóruns sociais sobre migração.
Desejamos expressar a nossa mais firme rejeição as deportações de migrantes, necropolítica, utilização de fundos públicos para despesas com armamento, titularização, militarização e externalização de fronteiras. Também condenamos veementemente qualquer tipo de discriminação contra a população migrante lgbtqi+, que requer proteção especial.
Defendemos a liberdade de circulação das pessoas, o direito humano de migrar e de migrar com direitos. Defendemos um novo modelo de governança da migração, baseada em alianças locais, regionais e internacionais com a participação dos migrantes para um pacto de solidariedade entre os povos.
Propomos, para o próximo ano, centrarmo-nos numa agenda de lutas para um Fórum Africano sobre Migração. Seguir-se-á a realização dos Fóruns Americano (2020) e Europeu (2021) sobre migração e fóruns magrebinos que tenham em conta estas questões. Tendo em vista a especificidade da questão da migração no continente, ligada em particular à política repressiva da União Europeia e à má governança de muitos países, permitirá rever as políticas exógenas implementadas no continente e trazer uma voz forte dos movimentos sociais africanos sobre migração.
Visita à Direcção de Migração da Cidade do México
No dia 02 de maio uma delegação da O.C.U, CCFD e RSF composta por Justine Festjens, Paulo Illes, Thais La Rosa e Patricia Gainza visitou a Subdireção de Migração da Cidade do México. Fomos recebidos pelo Sr. Jorge Hidalgo que ocupa o cargo de subdiretor. A Subdireção de Migração encontra-se amparada sob o guarda-chuvas da Secretaria de Inclusão Social e Bem-Estar (SIBISO) e foi criada pela Lei da Interculturalidade, Atenção aos Migrantes e Mobilidade Humana no Distrito Federal do México, datada de 2011. Esta Lei estabelece a criação de um Comité de Interculturalidade e Mobilidade Humana, composto por ministérios e autoridades competentes da Cidade do México para a resolução de problemas específicos dos hóspedes, a elaboração e implementação de um programa para os apoiar, a formulação e avaliação de um índice de interculturalidade, bem como a criação de um Centro de Interculturalidade.
Destacamos dois artigos desta lei:
Artigo 7. Na Cidade do México, nenhuma pessoa será sujeita a discriminação ou exclusão com base no seu estatuto de imigração. A administração pública garantirá a implementação de programas e serviços a fim de promover o acesso e o exercício universal dos direitos humanos.
Portanto, a cidade reconhece a pessoa migrante como sujeito de direitos e institucionaliza as políticas públicas que garantam a sua integração social.
Artigo 11. O Secretariado criará um registo de hóspedes da Cidade como instrumento de política pública, atenção e acompanhamento. A fim de promover o exercício dos seus direitos humanos, bem como para a orientação nos seus processos de regularização. O a inscrição no registo de convidados não será um requisito para o acesso às prerrogativas estabelecidas estabelecido na presente lei.
Através deste artigo a Lei da interculturalidade dá um passo importante e cria uma cédula de identidade local, o que tende a facilitar a vida das pessoas na cidade enquanto o Estado nação não resolve sua condição de migrante no país.
Após a visita ao escritório do diretor, este nos convidou para conhecer um Centro de
Atendimento ao Migrante que é gerido pela prefeitura. Lá conversamos com as atendentes e obtivemos informações sobre as principais comunidades que procuram por atendimento e sobre suas principais dificuldades. Também nos falaram sobre o trabalho integrado com os abrigos de migrantes e da importante articulação com outras cidades. A Cidade do México, segundo nos informaram, historicamente construiu políticas para o trânsito de imigrantes, no entanto atualmente encontram-se diante do desafio de pensar e construir políticas para pessoas que desejam radicar-se na cidade de maneira permanente. Eles agradeceram pela presença e manifestaram interesse em continuar dialogando e fortalecendo os laços com a O.C.U, a RSF como uma das suas filiadas regionais, e de participar nas atividades da Aliança Migração.
Oficina de Pinches Artistas
Uma nova iniciativa desse processo é começar a trabalhar os aspectos culturais no processo de migração. É assim que damos as boas-vindas à Pinches Artistas, uma organização sediada em Montevidéu e na Cidade do México, que se juntou recentemente à RSF. É um coletivo de artistas com um perfil social marcado, formado em sua maioria por artistas migrantes radicados em Montevidéu. Tem um importante cunho de participação e trabalho no bairro e para o bairro, bem como na economia circular.
A oficina se consistiu na apresentação de alguns dos projetos que realizam, nomeadamente "Mídia pública” que pretende comunicar com o bairro escrevendo e denunciando nas paredes das instalações e outros bairros (aqui os textos são escritos pelos membros do coletivo ou de qualquer vizinho/a que o solicite); o projeto “Pinche Calendário" realizado por mais de 25 escritores e gravadores que reavalia as datas relevantes para os membros do coletivo que buscam a desindustrialização de nosso tempo e nossas referências em nível local e regional; "Pinches Niñes" que é uma oficina para meninas e meninos sobre educação em arte e direitos humanos que busca educar no exercício da cidadania e do multiculturalismo. Para isso, incorpora a experimentação com diferentes técnicas artísticas, a incorporação de temas socialmente relevantes, o conhecimento das carreiras de artistas de destaque e uma viagem por várias culturas e momentos históricos.
Cerca de 15 pessoas participaram desta oficina com ampla representação regional que facilitou o intercâmbio sobre outras atividades de cunho político-cultural.
Reflexões finais
As atividades de migração no âmbito do FSM alcançaram seus objetivos. Foi possível passar aos participantes uma visão sobre modelos de governança das migrações, o qual defendemos conjuntamente na Aliança Migração, uma boa aproximação com a Cidade do México, divulgação e engajamento no processo de preparação ao segundo encontro da aliança migração, fortalecimento das organizações membros da O.C.U na América Latina, fortalecimento da delegação africana e dos objetivos de realizar um Fórum Social Africano envolvendo várias organizações de diferentes países do continente, que manifestaram o seu interesse e necessidade de trabalhar em conjunto desde o início da organização do Fórum.
Em termos de uma reflexão mais ampla, embora este FSM fosse muito importante e tivesse o papel acrescido de reunir movimentos e organizações sociais que tinham sido desunidos por mais de dois anos da pandemia, a sua gestão reafirma a relevância de dar prioridade a ações regionais e temáticas, tais como os fóruns regionais de migração. Estes espaços contribuem para discussões específicas assim como para a tomada de decisões e ações a nível regional que são simultaneamente limitadas e eficazes.
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